LIVRO: CHORANDO RETICÊNCIAS de Cláudia Brino

 

Vestido de estrofe inteira

 

Nascida do assombro primordial, das indagações fundantes da humanidade, a práxis poética ainda carrega nos ombros a fulguração e o fardo da origem. Sua luta não se dá apenas no campo de batalha da palavra; através da linguagem, melhor dizendo, mas também contra a linguagem. A sonhada transcendência da realidade passa pela transcendência da língua que a enforma e traduz. Objeto sonoro, quando pousa na cal da página, no entanto,

 o poema

é um vestido

de estrofe inteira.

 uma vestidura incômoda, imprevisível, capaz de deixar o leitor em situação delicada, nas horas mais desaconselháveis. E de nada adianta "não dar nomes aos bois", pois seu universo simbólico, suas múltiplas aberturas para o imaginário, seus tecidos de tensões veladas ou manifestas estarão sempre plenos de sinais semafóricos:

 a flor, para se abrir,

cativou pétala

por pétala

o pensamento de deus.

do manancial da origem, a aventura lírica buscará extrair todo o tesouro possível. Inclusive de crono, divindade cruel e ambivalente, responsável por gerar e devorar as fontes da vida. Se a morte é a mãe das mudas, a crono cabe o peso dessa metafórica paternidade:

como cicatriz de calo,

o tempo é profundo

em sua marca.

profundo e - lembra-nos Cláudia Brino - "sem passaporte". Como a terra que nos invade a memó-ria. A terra que tudo consome, "até a palavra", mas que ainda nos concede alumbramentos como, por exemplo, uma "madrugada extática":

a cor da noite

se estendeu

e

até o céu gozou

com a lua de ontem.

Iacyr Anderson Freitas - escritor



Simples assim é a poesia de Cláudia Brino

Entretanto a simplicidade é somente uma aparência na coleção Chorando Reticências. Os versos são portadores de metáforas poderosas pelo tema e profundas em emoções:

simples assim...

a flor, para se abrir,

cativou pétala

por pétala

o pensamento de deus

São estas metáforas temáticas que Iacyr Anderson Freitas, prefaciador do livro, caracteriza de “sinais semafóricos”. Mas, as metáforas são apenas tropos que expressam o inexplicável, aquilo que faz o poeta Ferreira Gullar afirmar: “só aquilo que não se sabe pode ser poesia”. Outro poema de poucas palavras, carregado de significados é “no silêncio”:

dentro da alma

o tempo

é o lenço das lágrimas

Naturalmente as lágrimas dentro da alma fazem um silêncio colossal, de tempo infinito. Nessa escolha de imagens está a fertilidade da poesia de Cláudia Brino. A pessoa do/da poeta é um ser cheio de tristeza,  igual  que  o  silêncio.  Principalmente  para escrever, a inspiração requer ao mesmo tempo a tristeza e o silêncio. Por isso é que em outros poemas a imagem do silêncio, às vezes, predomina e se impõe como um vigia: “o silêncio de tudo me observa” diz a poeta no poema “rompimento”. Outro poema que leva este tema às consequências finais é o “em oração” que diz: “dentro do meu silêncio a lágrima pesada disse tudo”

Talvez o poema mais feminino de Cláudia Brino neste livro seja o de título “poema”, porque se relaciona intimamente com o ser psicológico da mulher, a sua percepção do existencialismo de corpo e alma. é também um poema nas linhas da perfeição, como a roupa no corpo da mulher exigente e elegante. Ele diz:

o poema

é um vestido

de estrofe inteira

alinhavado

e

finalizado

 

ancora-se

em nossa alma

como segunda pele

ao final de lê-lo.

Até mesmo a visão da morte tem seu aspecto feminino na poesia de Cláudia Brino.  A poesia filosófica expressada em palavras simples, vindas do pensamento reflexivo, mas que toma a realidade como um ponto de partida para toda a inspiração. Para a morte vamos sem “passaporte” como diz a poeta: “clandestinamente a terra invadiu meus pensamentos, ajeitou-se sobre meu corpo e foi o lençol de minha lápide". O tratamento da terra e da lápide, da mesma forma que o vestido é a magia da mentalidade feminina. Nenhum homem pode ultrapassar essa ideia.  A reticência (...) como parte do título do livro é um detalhe de muito sentido, assim como o paninho de bandeja na capa, que entendo, mas não ouso interpretar.

Teresinka Pereira, IWA

 Chorando reticências e escorrendo até Deus

Um livro para quem já chorou escondido ou em público. A obra, em terceira edição, aponta para a continuidade e para uma realidade que se estende sempre para adiante e desde o título: Chorando reticências, da autora Cláudia Brino, remete a partir da forma do gerúndio, a ideia da emoção transbordante e à flor da pele, simples e interminável como verso bem ritmado.

As reticências também colocam diante do leitor as possibilidades, a extensão do pensamento e o alongamento do que é dito e do que fica em suspenso, nas entrelinhas de cada poema vestido de infinito. São vinte e dois poemas curtos e os elementos e situações cotidianas servem de forma e de base para todos eles a partir dos títulos: A fome que devasta, a conversa corriqueira, A madrugada extática e que também se estende sobre o leitor, o passaporte entre vida e morte, a saudade, as coisas cotidianas de casal e os rompimentos.

 A imagem da capa, que um dos prefaciadores não ousa interpretar,  está entre o lenço e a máscara de repouso, objetos práticos, capazes de esconder e velar o que os olhos certamente deixariam transparecer. Essa promessa, no entanto não é cumprida. É a poesia funcional, básica, mas desnuda e transparente. É a realidade como origem, parindo no papel trivialidades iluminadas.

A marca da lágrima (aquela que diz tudo o que o fica nas entrelinhas da palavra) é a alma de toda a obra, desnudando e evidenciando, como diante do espelho, emoções partilhadas em um exercício de reconhecimento e diálogo com o leitor. A atuação do tempo (lenço para essas lágrimas derramadas, retomando a imagem da capa) é também profunda em sua marca, deixada na pele como tatuagem, contundente e perene até o momento da morte. Assim, ainda o silencio em seus poemas é o eu lírico mais possível e imponente, e é quem mostra e revela, anterior à lagrima, aquilo que pode ou não ser dito. Uma tríade eficiente e que costura os versos e as fraturas expostas por eles.

Uma obra repleta de simplicidade e clareza, com a incisão do bisturi verbal que faz  escorrer o que a ideia não é capaz de abarcar. A poesia é íntima e filosófica, a palavra diária é quem faz refletir e voa, escapa até o inatingível, até alcançar o pensamento de Deus, além das alturas e da superfície das vírgulas e das reticências.

Uma poesia de carne e osso, passional, que se serve da metalinguagem, voltando sempre ao próprio verso, que, em estado de sonho, dormiu, e que de forma muito delicada e feminina, veste o poema de estrofe inteira, de morte e do indizível mais eloquente.

            Seus textos são curtos e incisivos, roupas rompidas e incompletas que deixam a pele exposta e desnuda. Versos que ecoam até após a morte iminente e chegam a Deus como prece ou confissão íntima, deixando o cotidiano no altar e, aos pés da arte, o que há de mais belo e dolorido. Lágrima incapaz de se esconder. Enlevação e inspiração que vale a pena escorrer entre os dedos e pelos olhos.

Charlene França - escritora